Por que 8 de março? (segunda crônica)
©Todos os direitos reservados Março, mês do meu aniversário (dia 14, junto com Carolina Maria de Jesus) e da comemoração anual do Dia Internacional da Mulher. Em 2021 escrevi uma crônica para meu antigo blog Medium.com © chamada Por que 8 de março?, na qual reflito sobre o significado dessa data e sobre o incômodo de ter se tornado mais comercial do que histórica, com muita pompa e pouca importância diária. Embora essa crônica esteja agora como parte de outro projeto, nada impede que eu compartilhe aqui minha reflexão sobre ela. Quando escrevi essa crônica, eu tinha acabado de ouvir falar sobre o livro As origens e a comemoração do Dia Internacional das Mulheres, da historiadora Ana Isabel Álvarez Gonzalez, que atualmente já li e indico muitíssimo a leitura. Na época, antes de ler o livro, tinha para mim que o famoso incêndio de uma fábrica têxtil e alguns outros acontecimentos isolados envolvendo mulheres operárias nos EUA foi o grande início na luta das mulheres por direitos humanos e trabalhistas, mas Gonzalez afirma que nenhum desses acontecimentos têm ligação direta com o movimento feminista. Segundo as pesquisas de González, o movimento surgiu simultaneamente nos EUA, França, Inglaterra e Rússia e, apesar das diferenças, a luta pelo sufrágio — o direito ao voto — foi o que uniu essas mulheres. Houve muitas outras datas até se estabelecer o 8 de março como data oficial do Dia Internacional das Mulheres. Mesmo depois da leitura, minha inquietação com o significado perdido da data permaneceu. O parabéns vazio, o agrado que é feito como uma obrigação, um protocolo; o vício dos presentes sem significado como se fosse uma data comercial. O esvaziamento dessa história, o esquecimento do sangue derramado por tantas mulheres para que hoje pudéssemos ter o mínimo. O caminho da história que vai se apagando como uma fotografia velha que precisamos olhar diariamente pra não esquecer de vez que ela um dia existiu. Entenda, tudo bem dar e receber mimos e presentes nesse dia — inclusive amo — , mas de nada valem se nos outros 364 dias do ano essa data for esquecida, sua história escondida, e continuarmos a ser tratadas como se ainda vivêssemos no final do século 19. 8 de Março é sim uma data importante, mas também simbólica. Símbolo de lutas que não acabaram e de buscas que mal começaram. Meu desejo era que seu significado se estendesse pelo ano inteiro. Feliz mês da Mulher para todas nós!
Crônica: Sororidade em qualquer idade
©Todos os direitos reservados Nem tenho mais dedos para contar a quantidade de adversidades que me aconteceram depois de publicar essa crônica. E a cada adversidade latente, republico-a de novo e de novo incansavelmente. Minha escrita tem novos planos, estradas e voos, mas minhas crônicas sempre terão um espaço especial. Compartilho esta crônica novamente para que você, mulher que se sente só nessa trajetória, compartilhe e confirme suas companhias. Garanto que irá se surpreender, só não sei como. 12/09/2022 Outro dia estava relendo anotações que fiz do livro Sejamos todos feministas, da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. Nesse livro ela conta que na Nigéria, o mais alto ponto de realização social que uma mulher pode chegar é ter um marido. Há até mesmo uma espécie de ditado popular que diz que é melhor ter um mau marido do que marido nenhum, mesmo esse “mau” podendo significar muitas coisas. Sou brasileira, mulher, escritora, professora, estudante de pós-graduação e quanto mais eu busco entender o porquê de ainda existir esse tipo de validação social mesmo com as mulheres já se dedicando a outras partes de sua vida, vejo também que esse tipo de valorização se replica. Não é só na Nigéria que se alimenta a ideia de que conquistar um marido é o suprassumo da vida de uma mulher. Também vejo isso no Brasil, porém, em alguns círculos, de modo mais velado. Sou de uma geração de mulheres que se dizem feministas em alto e bom som, vão a passeatas, compartilham postagens na internet e até têm fotografias de pensadoras penduradas nas paredes do quarto ou da casa, mas na hora de pôr o discurso em prática tudo muda de figura. É fácil fazer correntes de Facebook, WhatsApp e Instagram apoiando aquela famosa X na causa Y, se solidarizar com a realidade da moça A, festejar o sucesso da moça B, mas não é tão simples fazer o mesmo quando essa moça é sua vizinha, sua parente, sua amiga ou colega de trabalho. Uma união que deveria ser do micro para o macro fica apenas no macro, apenas na realidade aparente, pintando figuras e afetos que não se sustentam além dos 15 segundos de um stories. Já ouvi mulheres mais velhas comentarem dessa mesma falta de união entre suas colegas de geração, porém, ao menos no caso delas, é algo mais exposto. É dito na cara, ou melhor, logo se vira a cara. É doído e triste, mas ao menos é honesto. Antes fossem todas assim, diretas e honestas em qualquer idade. Já ouvi que sou “muito focada no que eu faço” em tom de crítica e que estaria tudo bem faltar a uma reunião de amigos se eu fosse em um casamento, mas jamais por motivos de trabalho. Acontece que nenhum dos pouquíssimos e brevíssimos relacionamentos que já tive — e não gostaria de ter nenhum de volta — chega aos pés da paixão que tenho pelo que faço. Veja bem, não sou contra ter uma companhia, de preferência uma que seja boa, mas acredito que fazer disso o centro das realizações de uma mulher já não cabe mais. Talvez alguns séculos atrás, quando ainda éramos vistas como uma propriedade passada de pai para marido e de marido para filhos, mas hoje já temos uma meia dúzia de direitos que nos garante certa autonomia. O curioso é que, de todo peso e cobrança social existente, o que as mulheres podem exercer umas sobre as outras é o mais dolorido. Celebrar as conquistas profissionais de uma mulher tanto quanto celebram as demonstrações de afeto deveria ser algo mais comum em nossa sociedade. Mais do que isso, deveriam celebrar nossa inteireza. Celebrar a mulher que decidiu ser dona de si mesma, que traçou seu próprio caminho, que escolheu não fazer de um alguém a razão da sua vida, mas partilhar a vida que já tem com outro alguém que valha a partilha. Desejo que a sororidade saia da teoria para a prática e que as ideias de tantas pensadoras tome forma sólida em nossa sociedade e deixem de ser só palavras. Desejo que as mulheres possam celebrar cada vez mais a si mesmas e umas às outras. E, leitora, se ninguém ainda te disse isso hoje, saiba: eu celebro você! Originalmente publicada em: https://feminarioconexoes.blogspot.com/2022/09/linguagem-do-batom-vermelho-por.html
Crônica: Mulheres fazendo história
©Todos os direitos reservados 26/06/2023 Há um ano atrás participei de uma das várias fotos tiradas em várias partes do Brasil para o registro histórico de escritoras brasileiras. Hoje, tendo em mãos o livro com nossas fotos contando um pouco sobre esse movimento, me vem à memória como foi viver esse dia tão simples, porém tão mágico. A foto das escritoras cariocas estava marcada para 12 de junho, domingo de dia dos namorados. Eu soube do evento poucos dias antes e fiquei tão animada que já tinha até uma playlist pronta para ouvir no dia enquanto me arrumava. Tentei chamar algumas escritoras que eu conhecia, mas nenhuma poderia ou queria ir por conta da data. Fui sozinha e fui feliz. Cheguei cedo na escadaria do Theatro Municipal e comecei a conversar com outras escritoras que já estavam lá, aguardado o horário da foto. Conversa vai, conversa vem, o grupinho foi aumentando e, coincidentemente ou não, notamos que éramos todas solteiras ou divorciadas. Apenas uma de nós estava em um relacionamento, porém teve uma manhã conturbada porque insistiu com o namorado que era “foto primeiro, dia dos namorados depois”. Ela nos contou um pouco do acontecimento e concluiu: “Depois dessa foto, nem sei se ainda tenho namorado”. A história era triste, mas ela estava tão feliz de estar ali que não parecia se incomodar com o desenrolar do resto do seu dia. Mais tarde, não pude deixar de observar a quantidade mínima de casais que estavam ali, apoiando sua parceira naquele momento histórico. Para muitos pode parecer irrelevante, “só mais uma foto”, “só mais um livro”, mas esse momento fez parte de uma pesquisa para o levantamento da quantidade de escritoras brasileiras nesse momento da nossa história. Todas as mulheres participantes do evento agora fazem parte do registro histórico de escritoras brasileiras e todas nós, mesmo as que não estão na foto, somos parte da construção dessa história por insistirmos e resistirmos com nossos escritos. Quando chegou a hora da foto e vi que praticamente fechamos a escadaria do Theatro, senti uma emoção indescritível. Eu não conhecia nenhuma daquelas mulheres e, ainda assim, me senti parte daquele grupo. Já houve grupos em que participei anos sem de fato me sentir parte e ali, cercada de mulheres desconhecidas, me senti rapidamente integrada. A sessão de fotos durou uns 20 minutos e assim que fomos liberadas fui direto para casa porque o tempo estava com cara de que ia cair aquela chuva. Agora folheio o meu exemplar de Um grande dia para as escritoras — Autoras do Brasil mostram a cara (que você pode comprar aqui) relembrando esse dia (que tem várias fotos aqui) marcante não só para minha memória, mas para a história.
Sobre a visibilidade das escritoras negras + Resenha do livro “O que é lugar de fala?” de Djamila Ribeiro
©Todos os direitos reservados Novembro mal começou e parte dos algoritmos na internet já se “mobilizaram” para aumentar a visibilidade de diversos criadores de conteúdo que falam sobre racismo e negritude. Pena que esse empenho só acontece uma vez por ano. Vendo os anúncios, em especial de escritores e artistas, comecei a me perguntar quantos autores negros tenho na minha estante de livros e, mais ainda, quantas autoras negras. Para minha vergonha, não tantas quanto deveria — e será que estou sozinha nessa? Apesar de ser brasileira e do meu país ter uma maioria da população negra, percebo que nos livros e nas artes esse grupo ainda é uma minoria, talvez nem tanto de produção, mas com certeza de alcance e divulgação. Isso me lembra uma professora de teoria literária que tive na faculdade contando sua experiência durante a palestra da famosa ativista negra estadounidense Angela Davis no Brasil. Minha professora, assim como várias outras pessoas que foram empolgadas para ouvir a palestra de Angela Davis na conferência “A Liberdade é uma Luta Constante”, não esperava que Angela exaltasse uma ativista e intelectual brasileira ao dizer “Eu acho que aprendi mais com Lélia Gonzalez do que vocês jamais aprenderão comigo” (tempo do vídeo: 51:40). Angela não entendia porquê nós no Brasil buscávamos referências negras fora do Brasil, se ela própria tinha como referência uma brasileira. E de fato buscar fora do país estudos que expliquem o nosso país e nossas questões melhor do que nossos intelectuais é, no mínimo, curioso. São muitas as vertentes que esse questionamento pode apresentar, mas me atenho aqui à visibilidade — ou falta de — que muitos estudiosos, artistas, criadores, escritores negros possuem em nosso país. Quando pensamos nas mulheres negras, menos ainda. Atualmente temos a Carolina Maria de Jesus, que foi “redescoberta” como escritora quase 50 anos depois de sua morte. Quando pensamos em como essas e outras escritoras, artistas e intelectuais negras conseguem visibilidade, não há como negar a importância que ainda tem a validação de uma elite intelectual qualquer ou a existência de um espaço de alcance democrático. Mesmo com algumas limitações e controvérsias, a internet cumpre esse papel de espaço democrático que, apesar do alcance dos algoritmos, ainda permite aos usuários existir e resistir no compartilhamento de artes e ideias. Olhando cuidadosamente minha estante de livros, encontrei um que acredito explicar de forma bem didática alguns processos de visibilidade, em especial da mulher negra, é O Que É Lugar De Fala, da filósofa e ativista brasileira Djamila Ribeiro. Cheguei a escrever uma breve resenha dele ano passado para minha página pessoal do Instagram e decidi compartilhar novamente esse ano, dessa vez no espaço do Feminário, que existe e resiste como um espaço virtual para mulherências diversas. RESENHA: O QUE É LUGAR DE FALA?, DE DJAMILA RIBEIRO Existe um termo que tem sido muito usado atualmente que é “Lugar de Fala”. Porém, seu significado muitas vezes é mal interpretado e utilizado como desculpa para pessoas optarem pelo silêncio por julgarem não ter “lugar de fala” sobre determinado tema ou realidade. O Que É Lugar De Fala? é um livro em formato de bolso, de 111 páginas e dividido em 4 capítulos + Apresentação e Notas. Possui diversas referências teóricas citadas de forma muito didática e bem explicada. O livro aborda principalmente a questão do feminismo negro e a predominância do saber acadêmico eurocêntrico e utiliza esses temas para desdobrar o significado e uso do termo “Lugar de Fala”. O que Djamila Ribeiro, filósofa e intelectual do feminismo negro brasileiro, vem nos mostrar com esse livro, ao explicar o termo que ela própria difundiu no Brasil, é que todos têm lugar de fala. Lugar de fala é de onde você vê determinada realidade, diferente de protagonismo, que é você viver determinada realidade. A consciência de que todos temos um ponto de onde observamos diversas situações é essencial para entendermos nossa força de ação sobre ela, mas nem todos enxergam a influência que têm seus lugares. Uma citação de Lélia Gonzalez abre o livro de Djamila e convida o(a) leitor(a) para uma viagem pela história da luta das mulheres negras desde o início do movimento feminista ao surgimento do feminismo negro, seguindo para explicações do termo “Lugar de Fala” e suas formas de uso. Acredito que esse livro seja uma leitura essencial para quem já faz muito uso do termo, sabendo pouco ou muito sobre ele. Mas para quem não tem familiaridade com o assunto e busca uma forma didática, simples e ao mesmo tempo completa para um primeiro contato com o conceito, esse também é um excelente livro! *Texto originalmente publicado em https://feminarioconexoes.blogspot.com/2022/11/linguagem-do-batom-vermelho-por.html . Todos os direitos reservados.